CARTAS de Boston XVI

0
627

XVI

– Não. Não posso.
– Não posso? 
– É demais para mim.
– Não estou entendendo! Como assim?
– Eu não posso fazer isso.
– O que está acontecendo?
– Não sei nem por onde começar.
– Calma, relaxa. Vem aqui vem…
– Não. É perfeição demais!
– Você enlouqueceu… onde você vai?

Foi a última vez que Carminha viu Tedão. Depois dessa conversa nunca mais. Um sumiu da vida do outro.

Foram anos de cerco. Tedão investiu tempo e dinheiro naquela conquista. 

Carminha era o centro de suas atenções.

Declarava seu amor aos quatro ventos sem nenhum receio. 

Era a mulher de sua vida. Realização dos seus sonhos. 

Por ela seria capaz de qualquer coisa.

Pelas miradas daqueles olhos, por um mísero sorriso, era capaz dos atos mais insanos.

A cada encontro com Carminha pelas ruas do bairro perdia a linha. Saia do prumo. Ficava sem voz. 

O pobre rapaz tartamudeava para delírio dos amigos.

Quando ela surgia com aquelas roupas justas e sandálias de salto revelando aqueles calcanhares de geometria perfeita, desenvolvendo aquela dança ao caminhar, verdadeira poesia concreta, o homem surtava. 

Horas depois aparecia macambúzio pelos cantos isolado de tudo e de todos.

Carminha era sua loucura. Seu irmão falava de seus sonhos alucinantes e de seus gritos apavorantes dentro da madrugada.

Todos, em parte, concordavam com aquela obsessão do Tedão. O conquistador da Baixada. O destruidor de corações. O desejo de consumo das viúvas de negro do bairro que tinha caído de quatro pelos encantos da filha de dona Lalá.

Carminha era de fato uma morena de parar a rua, o bairro e a cidade. 

Por onde passava causava alvoroço até entre as mulheres. 

Era muita saúde num só corpo! 

Uma mulher para ninguém botar defeito. Um vulcão digno de um império inteiro.

Pernas longas e retas, coxas roliças, cabelos longos e sedosos, olhos castanhos claros e brilhantes, boca de contorno perfeito,  mãos e pés sem defeitos.  

A mulher era tão certinha, dizia Jatobá, amigo de praia, que até os pelinhos das pernas eram todos virados para o mesmo lado.

Carminha era uma joia de brilho raro. Além da beleza física, era   uma mulher extremamente sensual e feminina.

Os rapazes longe do Tedão, claro, ficavam na maior zoação fazendo comparações entre ela e as estrelas da hora.

Mas todos concordavam num ponto: ela era de fato um monumento. Uma exaltação.

Como resistir a tamanho encanto?

Para algumas mulheres deveria ser dado um salvo-conduto para que circulassem nuas pelas ruas.

Que pudessem andar por todos os lugares sem nada cobrindo seus corpos.

Livres. Libertas de todos os dogmas e orações.

Desfilando a magia magistral de seus dons e insinuações sem pecados.

Conceber a mais gente, homens e mulheres, o direito de apreciar sem pudor uma obra de arte em movimento.

É um sacrilégio permitir a um único ser esse privilégio.

O Senhor concedeu que anjos povoassem a terra, que assim seja então!

Carminha até tentou conversar. Afinal, depois de tanta insistência estava convencida da paixão daquele homem. Mas parecia impossível. 

No ato final, joelhos enterrados sobre a cama olhando o corpo estendido e nu de Carminha, Tedão chorou.

Diante dos seus olhos estava a mais bela criação da natureza humana.

Com as mãos no rosto evitava olhar diretamente tamanha maravilha.

Não podia tocar, não podia macular aquela obra de Deus com todos os seus pecados.   

Totalmente fora de si, levantou-se como o diabo fugindo da cruz, vestiu-se como um louco e sumiu porta afora. Escafedeu-se!

Nunca mais ninguém viu ou ouviu falar dele. Tedão desapareceu.

Alguns contam que enlouqueceu e que hoje vive mendigando pelas ruas da cidade de olhar perdido e falando sozinho. 

Gerald D

O gremista Gerald D escreve sobre artes, literatura, futebol e política com muita propriedade e consciência, o que reflete o seu gosto apurado pela boa leitura