A Constituição Cidadã, o caso Hoerig e a perda da cidadania brasileira

A Necessidade da Aprovação da PEC 16/21

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O Congresso Nacional precisa votar a PEC 16/21. Foto: Imprensa Oficial

A Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988 pela Assembléia Nacional Constituinte, prevê a possibilidade do brasileiro ter dupla ou múltipla nacionalidade em apenas dois casos: O primeiro, quando da ascendência familiar, ou seja, quando a nacionalidade estrangeira decorre da lei estrangeira reconhecer como nacional o nascido em seu território, ou os descendentes de seu nacional. No segundo caso, a aquisição da dupla nacionalidade se dá quando houver imposição de naturalização ao brasileiro residente no exterior como condição para permanência no território do país de residência ou para o exercício de direitos civis.

Por anos, o entendimento oficial foi diametralmente oposto: “a nacionalidade brasileira não exclui a possibilidade de, simultaneamente, possuir outra nacionalidade. A perda da nacionalidade brasileira somente ocorrerá no caso de vontade formalmente manifestada  pelo indivíduo. Em suma, ao tornar-se cidadão estrangeiro, por processo de naturalização, o cidadão brasileiro não perde automaticamente a cidadania brasileira, mas sim, passa a ter dupla cidadania: brasileira, por nascimento, e a estrangeira, por naturalização.

Na prática, no entanto, o parecer do Ministério das Relações Exteriores (MRE) de que não havia “qualquer restrição quanto a múltipla nacionalidade de brasileiros” se confirmava em virtude da não ocorrência de casos de revogação da nacionalidade. Tudo isto mudou frente a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do caso Cláudia Hoerig, causando grande insegurança na comunidade emigrante brasileira.

A brasileira Cláudia Hoerig foi extraditada para os Estados Unidos em 2018 para responder à acusação de ter assassinado seu próprio marido. Nota da Redação: Cláudia Hoerig foi condenada à prisão perpétua em fevereiro de 2019. Embora a legislação brasileira proíba a extradição de brasileiros natos, o STF julgou que a brasileira havia perdido a nacionalidade brasileira ao se naturalizar americana em 1999.

Segundo a análise do STF, o brasileiro(a) que possuir Green Card e optar por adquirir a nacionalidade americana, perderá automaticamente a nacionalidade brasileira. A base para tal decisão resta na suposição errônea que (1) para residir, trabalhar e exercer direitos civis nos Estados Unidos basta ter o Green Card e que, (2) o juramento de fidelidade durante a solenidade de naturalização constitui “ato de renúncia a nacionalidade brasileira.”

O primeiro argumento que norteia toda a decisão da Suprema Corte, não adere à realidade, já que os titulares do Green Card não têm o direito de viver e trabalhar nos Estados Unidos sem restrições. Estes podem ser despojados de seu status migratório a qualquer momento e deportados. A entrada no país pode ser negada com muita facilidade. Além disto, o brasileiro portador de Green Card, não pode exercer direitos civis fundamentais tais como votar, ocupar cargos eletivos, servir como jurado em júri popular e trabalhar em posições reservadas somente para cidadãos. Outras restrições incluem possibilidades empresariais, restrições na aquisição de empréstimos e benefícios tributários além de problemas na sucessão hereditária. Limitações existem ainda quando estes decidem peticionar vistos para seus familiares. Mas recentemente, na reforma do sistema da segurança social dos Estados Unidos, foram colocados limites ao acesso a certos benefícios providos pelo governo para aqueles portadores do Green Card.

Por fim, é importante aventar que existe toda uma literatura mostrando que o status migratório de um indivíduo afeta seu padrão de vida. A cidadania protege os imigrantes da exploração no mercado de trabalho, abrindo múltiplas possibilidades econômicas e facilitando a mobilidade ocupacional – uma espécie de prêmio por naturalização. No entanto, com a decisão do STF, muitos brasileiros não obterão a nacionalidade americana com receio de perda da brasileira e, por conseguinte, terão maiores problemas de absorção no mercado de trabalho e entraves nos avanços ocupacionais, geração de renda e riqueza.

Assim, parece que a posição que afirma a não necessidade da naturalização porque o Green Card garante a “permanência no território do país de residência, ou para o exercício de direitos civis, não nos parece correta. A segunda razão, tem menos peso argumentativo, pois ela deriva da primeira, além de representar uma obrigação formal ritualística.

 Estas questões e inquietudes levantadas pelo caso Hoerig, trazem à tona a discussão da dupla nacionalidade e inspiram a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 16/21) que altera o art. 12 da Constituição Federal para suprimir a perda da nacionalidade brasileira em razão da aquisição de outra nacionalidade. De autoria do então senador Antonio Anastasia (PSD-MG), a proposta foi aprovada no senado em junho de 2021 e está em análise pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados. No texto proposto, a perda da nacionalidade se dá somente quando a naturalização for cancelada por decisão judicial em virtude de fraude ou atentado contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; ou quando for feito um pedido expresso pelo cidadão ao governo brasileiro, ressalvados os casos que acarretariam a apatridia.

Segundo o Censo americano, em 2021, 562.700 brasileiros imigrantes vivem nos Estados Unidos, número muito menor do que a estimativa do Ministério das Relações  Exteriores (MRE) de 1,7 milhões. Ainda segundo o Censo americano, 35,9 porcento dos 562.700 brasileiros residentes nos Estados Unidos, adquiriram a cidadania americana, decisão esta tomada sem a intenção de abrir mão da cidadania brasileira e em concordância com a orientação do MRE. A PEC 16/21 trará segurança jurídica para estes brasileiros e para centenas de outros que, por razões de formação de família, exigências profissionais, dentre várias outras situações, correm o risco de perder a nacionalidade brasileira.

 Voltemos a um dos fundamentos básicos da Constituição Cidadã de 1988, que é a cidadania com contornos amplos e em alinhamento com a Declaração Universal de 1948 e a Conferência de Viena, voltadas ao reconhecimento e defesa da dignidade da pessoa humana.  Anos atrás, derrubamos a emenda constitucional aprovada em 1994 que negava a cidadania brasileira automática aos filhos de brasileiros nascidos no exterior – os brasileirinhos apátridas.  Agora, seus pais se encontram neste limbo legal. Devemos aprovar a PEC 16/21 ainda este ano para que o Brasil democrático que renasce, acolha também seus cidadãos no exterior.

Texto publicado anteriormente no Washington Brazil Office

Alvaro Lima

Álvaro Lima é diretor de Pesquisa da Boston Planning and Development Agency (BPDA). Recentemente, atuou como vice-presidente sênior e diretor de pesquisa da Initiative for Competitive Inner City (ICIC). Economista político de formação, foi Chefe do Departamento Econômico do Ministério da Indústria e Energia em Moçambique e coordenador de Projetos de Desenvolvimento Regional do Instituto de Pesquisas Sociais e Econômicas – IPARDES no Brasil. Ele também é o fundador do Instituto Diáspora Brasil (IDB). Álvaro é mestre em Economia Política pela New School for Social Research, e suas áreas de Interesse são Transnacionalismo, Cidadania e Direitos Humanos, Representação e Participação Política Transfronteiriça e Integração Imigrante no Mercado de Trabalho.