Especial racismo: ‘Fui discriminado por ser negro e gay’

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O depoimento desta terceira reportagem da série sobre racismo e preconceito é de Gean, um capixaba que foi expulso de casa aos 17 anos pelo pai quando este descobriu que ele era homossexual. Gean foi para o Rio de Janeiro onde trabalhou como entregador numa floricultura até ser discriminado num prédio da Zona Sul quando ia entregar flores. Uma moradora chamou a polícia e em poucos minutos ele estava dentro da viatura sem dever nada a ninguém. Um dos PMs bateu nele e disse que ia leva-lo para um passeio caso ele não confessasse. Sua sorte foi que o porteiro do prédio que o conhecia acionou seu patrão e em poucos minutos havia uma mobilização que fez com que fosse libertado pelos policiais. Ao sair da viatura ouviu de um dos PMs que daquela vez dera sorte, mas que da próxima o mundo se livraria de mais um ‘negro’. Temendo por sua vida, Gean resolveu vir para os Estados Unidos em 1995.

Como defino a minha história nos Estados Unidos? Já assistiu o filme ‘Conduzindo Miss Daisy’? Aquela é a minha história. Quando cheguei fui morar na Califórnia na casa de uns amigos do meu patrão no Brasil e poucos meses depois me mudei para uma outra casa onde aluguei um quarto. Uma das pessoas que morava lá, limpava piscinas e fui trabalhar com ele. Havia uma casa de uma família muito rica e um dia a governanta da casa me perguntou se eu queria trabalhar lá cuidando dos jardins e ajudando na manutenção da casa. Eles me pagariam um salário, eu moraria na propriedade e teria liberdade de estudar se quisesse. Topei e dias depois me mudei para lá e a rotina de trabalho era pesada e logo eu estava cuidando do jardim e de um canteiro de flores onde havia rosas maravilhosas. Um dia eu estava trabalhando, totalmente absorto e nem me dei conta de que uma mulher idosa numa cadeira de rodas me observava. Era Miss Lorna, a matriarca da família e depois de dois meses trabalhando na casa era a primeira vez que a via. Sua fama entre os empregados era terrível pois ela era irascível, intolerante e completamente transtornada e eles só tinham paz quando ela viajava para Paris, onde tinha uma casa. Aos gritos ela me perguntou quem havia me admitido, já que ela não gostava de negros e queria saber o que eu fazia ali mexendo nas suas rosas. Aquilo foi um choque para mim, pois mesmo não tendo um completo domínio do inglês entendia perfeitamente o que ela dizia. Entre assustado, apavorado e ofendido sai dali e fui para o meu quarto. Em poucos minutos, entrou a governanta e o administrador da propriedade que me pediram desculpas e disseram para que voltasse ao trabalho, pois não queriam que eu fosse embora. Dois dias depois eu estava no jardim de novo e dei de cara com a velhinha, desta vez sorridente e amável que me disse para aprender inglês para conversar com ela. Meses depois eu já falava inglês e entendia muita coisa e ela mandou me chamar. Disse na minha cara que não gostava de mim por causa da minha cor e porque eu era homossexual. Disse que eu tinha dois problemas e que ficasse longe dela e me deu um envelope com US$ 200 para que eu comprasse uma camisa nova. Fiquei sem entender nada pois uma das recomendações era que não pegássemos nada de nenhum dos patrões e quando devolvi o envelope para a governanta, ela já sabia e disse que eu poderia ficar com o dinheiro, já que Miss Lorna havia dito que gostava de mim e queria me agradar, apesar de eu ser negro, de acordo com as palavras dela. Em 1999, a pessoa que cuidava de Miss Lorna ficou doente e morreu em poucos meses e me perguntaram se me disporia a trabalhar com ela. Minha vida melhorou, pois passei a morar num apartamento melhor dentro da mansão, e em 2001 eles me legalizaram. Graças a Deus quando comecei a cuidar de Miss Lorna ela melhorou de aspecto, pois eu me preocupava com ela, embora nos seus rompantes e momentos de raiva me xingasse, me mandasse embora e um dia eu fui mesmo. Peguei as minhas coisas e sumi por uma semana, disposto a não voltar mais lá. Foram atrás de mim e um dos filhos dela foi pessoalmente onde eu estava pedindo que reconsiderasse a decisão de ir embora e voltei para a mansão dois dias depois. Miss Lorna nem bom dia deu, só me disse que era para arrumar as malas pois íamos viajar e pela primeira vez eu ia com ela para a França passar o verão lá. Com o passar dos anos, entre xingamentos e impropérios, fui levando a vida e 2007 ela morreu aos 88 anos. Na cerimônia fúnebre eles leram uma carta de Miss Lorna, onde ela dizia que os melhores anos da vida dela haviam sido aqueles em que eu cuidei dela e que mesmo eu sendo negro e gay ela gostava de mim do seu jeito e que nunca mais as rosas dela foram as mesmas depois que eu deixei de cuidar do jardim, e que a família deveria me colocar de volta lá. Entre lágrimas e risos de todos, esta foi a forma dela se despedir de mim. Considerei-me um vitorioso depois de tantos anos, poder ter o reconhecimento dela, pois da sua família já tinha há muito tempo. Recebi uma proposta para cuidar de duas velhinhas, irmãs, muito amorosas e que eram amigas da família e das quais cuido até hoje. O que me dói? Foi ser discriminado e expulso de casa pelo meu pai por ser gay, fato, que ele muito religioso não aceita até hoje. Isto é o meu maior incômodo e dor, pois o resto tirei de boa”.
Gean, mora numa cidade no entorno de Los Angeles, Califórnia.

Jehozadak Pereira

Jehozadak Pereira é jornalista profissional e foi editor da Liberdade Magazine, da Refletir Magazine, do RefletirNews, dos jornais A Notícia e Metropolitan, do JS News e jornalista da Rede ABR - WSRO 650 AM. Foi articulista e editorialista do National Brazilian Newspaper, de Newark, New Jersey. É detentor de prêmios importantes tais como o Brazilian Press Awards e NEENA - New England Ethnic Newswire Award entre outros