De babá a professora universitária, a trajetória de Natalicia Tracy

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1894

Há pouco mais de quatro anos, o Centro do Imigrante Brasileiro passou por uma profunda crise diretiva e administrativa que quase provocou o fechamento das suas portas. O então diretor executivo da entidade envolveu-se numa série de polêmicas que assustou e afugentou as fundações que destinavam mediante projetos verbas para a entidade. Diretores, colaboradores e voluntários se afastaram do CIB e o destino parecia mesmo ser o encerramento das atividades.

Foi quando surgiu no cenário um grupo de pessoas que decidiram arregaçar as mangas, trabalhar arduamente, as vezes pagando despesas do próprio bolso e resgataram a dignidade e histórico de lutas e combatividade em favor do trabalhador imigrante brasileiro.

Entre estas pessoas estava Maria Natalícia Tracy, dona de uma história de vida de luta e superação que foi escolhida como diretora executiva do Centro do Imigrante Brasileiro e que passados estes anos, pode-se dizer que recolocou o CIB no lugar de onde jamais deveria ter saído. Incansável quando se trata de lutar pelos direitos dos trabalhadores tanto em Massachusetts, ou batendo nas portas dos políticos e autoridades em âmbito federal, Natalícia que começou a sua jornada na América trabalhando como babá, galgou por seus esforços e méritos os passos e construir uma nova história.

Neste depoimento ao mundoyes.com, Natalícia Tracy conta um pouco da sua exemplar história de vida.

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Natalicia e Matthew numa passeata. Aos 15 anos, Matthew é voluntário no CIB

Vim de São Paulo e há 20 anos moro em South Shore,  Massachusetts. Eu vim para os Estados Unidos com um visto de trabalho doméstico de babá e quando cheguei não tinha nem completado o ensino médio no Brasil e falava poucas palavras em inglês. Morei em Boston por três anos indocumentada, pois meus patrões deixaram meu visto vencer. Hoje, sou cidadã americana há 16 anos, sou casada com um americano de descendência irlandesa, e mãe do Matthew Tracy, 15 anos de idade. Matthew está terminando o segundo ano do high school; adora o Brasil e arroz e feijão. Matthew se considera um ativista e faz trabalho voluntário no CIB. Moro em uma vizinhança americana, desde quando terminei o meu contrato de trabalho de dois anos como babá. Entretanto, quando estava fazendo meu mestrado, em 2005, começei a me interessar em estudar a comunidade brasileira. Meus estudos me levaram a ajudar membros da comunidade e ao envolvimento com organizações como o CIB. Eu não tive dificuldades em desenvolver um trabalho com a comunidade, pois adquiri muitas experiências próprias, através do meu histórico como imigrante. Os meus três primeiros anos nos Estados Unidos foram traumáticos. Sofri muito por ser mulher, negra e imigrante! Eu me identifico com as pessoas que chegam no CIB com causas de roubo de salário, discriminação, e abusos. Eu sei exatamente o que eles estão sentindo, pois eu passei pelas mesmas situações. Eu me sinto e me considero parte da comunidade; para mim o meu trabalho não é simplesmente um emprego. Durante toda a minha caminhada até o meu mestrado, trabalhei como doméstica cuidando de crianças, e idosos, e limpei casas, também. Tinha semana que eu trabalhava até 60 horas. Por muito tempo tive um expediente de 24 horas cuidando de uma criança deficiente, que não andava, não falava e se alimentava através de um tubo. Esse foi um dos motivos que facilitou meu engajamento no movimento trabalhista de trabalhadores domésticos em nível nacional, e iniciar o movimento em Massachusetts logo após começar a minha gestão como diretora executiva do CIB, em 2010. Também, sou professora acadêmica de Sociologia na Universidade de Massachusetts, em Boston, onde eu ensino Raça e Etnia, História Racial dos Estados Unidos, Sociologia da Família, e Metodologia de Pesquisa da Ciência Social. Esse ano termino o meu doutorado na Universidade de Boston, com tese focada no impacto das leis imigratórias na família mista, na classe e raça. Minha tese de doutorado é um trabalho comparativo da vida de brasileiros que moram em Massachusetts e em Portugal, que tem um capítulo com foco somente em política e com sugestões para mudanças sociais. Tenho planos de manter o trabalho que faço na universidade, com carga horária de 8 horas semanais. Normalmente, estou na universidade duas tardes por semana, terças das 3-5 da tarde e quintas das 3-9 da noite. Geralmente, tenho cerca de 130 estudantes por ano, dos quais a maioria busca diploma para trabalhar em centro de detenções, prisões ou para a Imigração. Certamente, o meu trabalho na universidade contribui para o trabalho comunitário. Através das minhas aulas, tenho o poder de influenciar e educar os meus alunos, que serão os futuros oficiais de justiça tal qual Imigração,  polícia local e estadual, etc, a verem a comunidade com menos racismo e discriminação. Muitos problemas são gerados por falta de conhecimento sobre a comunidade imigrante. Por exemplo, há alguns dias encontrei com um ex-estudante em Braintree, Massachusetts, uniformizado como polícia de Braintree. Ele ainda se lembrava que tivemos um grande debate na sala de aula sobre secure communities (comunidades seguras) e o seu impacto destruidor sobre muitas famílias e todos nós que moramos nesse estado. Sinto uma obrigação moral em contribuir com o crescimento da nossa comunidade levando informação, e envolvendo a comunidade em assuntos que afetam a vida dela direta ou indiretamente. Por isso vou continuar meu trabalho no CIB, sempre apoiando à comunidade que se encontra em situações difícieis, e trabalhando com outras organizações e sindicatos, para aumentarmos o nosso poder político não somente no estado de Massachusetts, mas também em nível nacional. Também, continuarei na Universidade, onde uso minhas aulas para influenciar meus alunos a mudança político-sociais. Um dos grandes anseios que existe no nosso trabalho é a falta de união e apoio geral da comunidade. A comunidade é grande, existem brasileiros morando em algum dos distritos no estado de Massachusetts, porém ela é fragmentada. Por isso, leis como a Safe Driving, que deveria ter grande influência na decisão do comitê, não tem! A minha grande alegria é que na comunidade há muitas pessoas que estão mudando a mentalidade de pensar em si próprio e começando a ter uma consciência social e passando a pensar de forma coletiva. Muitos reconhecem o trabalho e compromisso que o CIB tem com a comunidade. Várias pessoas nos apoiam como voluntários, aprendem, se informam, e levam essas informações para os outros membros da comunidade. A disseminação de informação é essencial para o trabalho socioeducacional do CIB, gerando mudança social e melhoramento na vida dos trabalhadores imigrantes. Uma grande frustração são as pessoas maliciosas, de certa forma sádicas, que sentem o prazer em criar discórdia e caos na nossa comunidade. A mensagem que gostaria de deixar a todos é: nunca esqueça que somos todos seres humanos, temos necessidades, talentos, fragilidades, mas somos fortes. Todos nós temos o poder de criar mudanças sociais que beneficiarão a todos. Todos nós somos afetados pela nossas ações e é importante reconhecer e apoiar às pessoas dedicadas que trabalham duro para o benefício de todos. Todos têm a capacidade de aprender e crescer, basta ter a vontade!

Jehozadak Pereira

Jehozadak Pereira é jornalista profissional e foi editor da Liberdade Magazine, da Refletir Magazine, do RefletirNews, dos jornais A Notícia e Metropolitan, do JS News e jornalista da Rede ABR - WSRO 650 AM. Foi articulista e editorialista do National Brazilian Newspaper, de Newark, New Jersey. É detentor de prêmios importantes tais como o Brazilian Press Awards e NEENA - New England Ethnic Newswire Award entre outros

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