MARADONA!

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A morte de Diego Maradona provocou uma comoção jamais vista na Argentina

XVIII

Quando morre um astro, uma estrela, uma parte de nós vai junto.  

Perdemos uma referência da nossa existência.  

Ele ou ela permanecerão. Sua arte seguirá sendo lembrada.

Não importa a categoria. É aquela velha história: vai o homem, mas fica a obra.

E nada retrata com mais força essa relação do que o esporte e principalmente o mais popular do planeta: o futebol.

Se foi Maradona humano, ficou o Maradona gênio da bola. 

Eterno como um sol estático sobre o tempo.

Foi a dúbia condição humana. A complexidade. A rebeldia. Os opostos. 

Foi o primeiro ex-jogador, muito antes do FBI, a denunciar os corruptos, os mafiosos do futebol de João Havelange e Blatter.

A facção criminosa que mandava no futebol mundial.

Junto de seus dribles e suas jogadas geniais aparecia sua rebeldia. 

Todo artista é um rebelde por natureza. Um revolucionário. 

Alguém que segue ao contrário do senso natural.

Que transforma um ato comum numa delirante fantasia.

Maradona fazia perguntas incômodas e lutava por direitos trabalhistas.

Provocava um choque de realidade aos jogadores e ex-jogadores amestrados.

Jamais deixou de simplesmente jogar bola. Jamais silenciou diante das injustiças.

Tinha posições políticas claras. Tinha lado e nunca escondeu. 

Omissão era uma palavra que não existia para ele.

Meio deus e meio humano. 

Um ser que representava na essência um pouco de todos nós.

Fama que não tirou sua humanidade. Um mito – esse de verdade – que representava fora de campo nossas próprias limitações e medos.

Das lembranças de hoje e de ontem, lembrei de uma crônica que li num livro que todo apaixonado por futebol deveria ler e ter na sua estante: El Fútbol a sol y sombra, de Eduardo Galeano.

A minha edição comprei no Uruguai, país pelo qual sou um declarado apaixonado.

Depois da amarelinha “feinha”, como dizia Vinicius de Moraes, eu sou Celeste siempre!

Existe uma edição em português traduzida por Eric Nepomuceno e Maria do Carmo Brito, publicado pela L&PM.

Nesse livro, Galeano fala do menino Maradona, que eu gostaria de dividir como num abraço fraterno aos admiradores do futebol.

Um novembro que nos deixou um pouco mais pobres.

Foi em 1973, jogavam as equipes infantis de Argentinos Juniors e River Plate, em Buenos Aires.

O número 10 do Argentinos recebeu a bola de seu goleiro, evitou o beque central do River e começou a corrida. 

Vários jogadores foram ao seu encontro: passou a bola por fora de um deles, entre as pernas de outro, e enganou mais um de calcanhar.

Depois, sem parar, deixou paralisados os zagueiros e botou o goleiro caído no chão, e se meteu caminhando com a bola na meta do rival.

No campo tinham ficado sete meninos fritos e quatro que não conseguiam fechar a boca.

Aquela equipe de garotinhos, os Cebollitas, estava invicta há cem partidas e tinha chamado a atenção dos jornalistas. Um dos jogadores, Veneno, que tinha treze anos, declarou:

– Jogamos para nos divertir. Nunca vamos jogar por dinheiro. Quando entra dinheiro, todos se matam para ser estrelas, e então chega a hora da inveja e do egoísmo.

Falou abraçado ao jogador mais querido de todos, que também era o mais alegre e o mais baixinho: Diego Armando Maradona, que tinha treze anos e acabava de fazer aquele gol incrível.

Maradona tinha o costume de pôr a língua de fora quando estava em pleno impulso. 

Todos os seus gols tinham sido feitos com a língua de fora.

De noite dormia abraçado com a bola e de dia fazia prodígios com ela. 

Vivia numa casa pobre de um bairro pobre e queria ser técnico industrial. 

Os textos de Eduardo Galeano como tantos outro de outros grandes escritores, oferecem uma outra dimensão do que o futebol é capaz de proporcionar.

Ao ler obras como essa você descobre que não precisa necessariamente ser um fã de futebol, basta simplesmente ter bom gosto e saber apreciar um bom livro.

Maradona, mesmo sendo um ídolo mundial, sabia do quanto era importante ter opinião. Se posicionar. Ser voz ativa.

Na Copa do Mundo no México, em 1986, Maradona ensaiou um movimento de greve dos jogadores diante da insistência da Fifa de promover partidas em pleno calor do meio dia. 

Perdeu, mas se posicionou sem medo algum das consequências.

Já na Copa de 1990, na Itália, recusou cumprimentar Havelange na entrega de medalhas.

Maradona dizia que “a Fifa se transformou num campo de jogo para os corruptos”. Para ele, a entidade era uma “dolorosa vergonha para quem ama o futebol”.

Os alertas e denuncias de Maradona apareceram concretamente em 2015 pelas mãos das autoridades dos Estados Unidos. 

Ao pensar nos milhões de crianças – hoje em torno de 225 mil crianças dormem todos os dias pelas ruas das principais cidades brasileiras – que sonham em estudar e conquistar uma profissão para sair da miséria e oferecer uma vida mais digna aos seus, lembrei de um pensamento.

Infeliz do homem que não sonha.

Maradona sonhou, sonhou e conquistou o mundo com sua arte.

Galeano certa feita escreveu ou falou, “deuses não se aposentam, por mais humanos que sejam”.

Maradona sujo, pecador, falível, foi o mais humano dos deuses do futebol.

E deuses não morrem, permanecem.

Gerald D

O gremista Gerald D escreve sobre artes, literatura, futebol e política com muita propriedade e consciência, o que reflete o seu gosto apurado pela boa leitura