CARTAS de Boston # II

Texto e conteúdo de primeira

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Roma dos romanos

II

Minha primeira paixão durou pouco, mas foi para sempre. Não era banhada pelo rio Adige. 

Era um ser misterioso, enigmático e completamente ausente do cotidiano do meu pequeno lugar. 

Morava perto da casa dos meus pais e tinha o mais belo nome que já proferi.   

Quando encontrava pelas ruas meu coração disparava. O efeito era avassalador sobre mim. Ganhava uma energia desconhecida, um entusiasmo assustador pela vida. 

Fazia o mesmo percurso, quase sempre no tempo exato. Mudava o dia, mudava a semana, mudava o colorido das varandas e o semblante do estranho que cruzava meu caminho no sentido contrário. 

Nada perturbava minha solidão. Nas tardes quentes de verão ou nas madrugadas sufocantes de nevoeiro intenso.  

Ocasiões que percebia minha insignificância e nada mais em volta. Nem o céu azul, nem a lua na escuridão. Só um imenso e perturbador vazio.  

Pela estrada sinuosa de chão batido, logo depois da última curva do lado direito, um pouco antes da encosta, vinha o som abafado pelos dias cinzas de portas e janelas fechadas dando o tom do outono.

Dias em branco e preto entregando ondas de liberdade pela praia deserta num beijo eterno. 

Imagem refletida de um corpo franzino, dorso levemente inclinado navegando longe, distante de todo aquele cenário. Indiferente. 

Mãos delicadas de dedos longos e firmes deslizavam pela face de um velho piano repousado num canto da enorme sala.

Nas manhãs de primavera a música dominava o ambiente. Tomava de assalto cada canto daquele casarão. Superando espaços abertos de cortinas brancas balançando ao sabor agradável da brisa do mar. 

Muitas vezes diminuía os passos prolongando os segundos. Outras vezes, simplesmente parava. Inerte. Segurava firme as grades frias e olhar fixo. Inebriada, mergulhada em cada nota.

E nessas viagens saia da realidade. Logo podia ser Schubert, outras vezes Brahms, um sopro de Liszt ou Chopin. A magia acontecia. Um imenso véu descia sobre tudo. Sentia meu corpo invadido e dominado por completo.  

O coração fagueiro ganhava assas libertando uma alma de um corpo cansado dos males da vida para longe de Nahant.    

As vezes chuva. As vezes neve. As vezes eu, solidão.

Vindas e idas. Pequenas porções de alegrias e frustrações, lágrimas e sorrisos jogados, esquecidos pelo caminho.

A luta diária do ser é ser menos infeliz, dizia meu avô.  

Quando flutuava pelo imenso jardim, sentia seu espírito distante. E meu silêncio encontrava abrigo. 

Compartilhávamos tristezas e orações. Éramos imagens esquecidas, paradas no tempo. Corpos pesados. Arrastados. Amargurados. 

Ad aeternum! 

Olhar baixo sem direção e sem rumo. Todo sonho é possível, pensava.

Toda manhã do quarto para o piano. Semana após semana. No mesmo horário. Sem importar o clima. 

Quase três décadas depois, uma resignação incompreensível para os olhos  comuns, mas compassiva para mim.

Talvez um juramento em uma madrugada sombria de ondas quebrando sobre rochedos e rajadas de ventos sibilando pelas paredes de um velho galpão em uma praia esquecida e dois corpos abandonados.

Talvez! Quem sabe! 

A tal promessa que um dia chegaria, por certo, como o entardecer.  

Sabe lá o tempo, o que pode ser o tempo! 

Infalível, impiedoso, que avança sobre os segundos consumindo o instante para nunca mais.

No findar de uma sexta-feira na sexta hora, entre o que é claro e o que é escuro, um corpo estendido e um livro aberto sobre o peito.

Uma imagem imóvel e um semblante sereno transcendendo para além do lugar.

O alvorecer perdeu a graça!

A lua, suspensa no firmamento, o brilho. 

Eu, a companhia!

Meus sonhos seguiram ao abandono da noite, mas não ao esquecimento.

Transformada numa Lídia eterna marcada pelo corpo, pela alma por onde fiquei, pelo espaço por onde passei.

Um pouco depois da décima segunda hora de um sábado pálido e frio, lembro bem, surgiu um homem impávido no meu lugar de todos os dias.

Ao jardineiro distraído fez uma pergunta que mais ninguém escutou. 

Mas eu sabia. Tinha certeza absoluta do que era. 

Um nome que desejei pronunciar em voz alta para o mundo ouvir estava agora viva na voz de um estranho falando baixo diante do velho portão.

Quantas juras em silêncio roguei ao infinito! 

Quantas promessas sem respostas lancei ao vento! 

Foram tardes, manhãs e noites desejando um olhar apenas. 

Semanas, meses e anos suplicando por uma mísera chance de existir.

Fecho os olhos cansados e lembro daqueles segundos no tempo distante.

O pobre jardineiro agachado entre cravos balbuciando e do lado de fora um homem vestindo negro, insistia: 

– Anda logo meu velho, diga a Verona que sua promessa chegou.                                                                                                                                                                                                                                              

Gerald D

O gremista Gerald D escreve sobre artes, literatura, futebol e política com muita propriedade e consciência, o que reflete o seu gosto apurado pela boa leitura