SÉRIE especial: Elaine Fernandes – uma batalhadora contra a violência

Primeira reportagem especial alusiva ao 'Dia Internacional da Mulher': Elaine Fernandes

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Elaine Fernandes tem um destacado trabalho na defesa de mulheres abusadas

O blog vai publicar uma série de reportagens nos próximos dias contando a história de uma mulher por ocasião do Dia Internacional da Mulher. A primeira da série é Elaine Fernandes, que desenvolve um trabalho voltado para o auxílio, orientação, apoio e suporte para mulheres abusadas e que são vítimas de violência doméstica.

Elaine Fernandes chegou com a família – marido e duas filhas, nos Estados Unidos em março de 2000 e desde então construiu uma sólida carreira na defesa de mulheres abusadas.

Família Fernandes

“Vivíamos bem no Brasil cercados por uma grande família, tínhamos amigos, uma vida profissional e levávamos aquela vidinha sofrida de classe média, trabalhando como loucos sem perspectiva de futuro por causa da eterna instabilidade política, econômica e principalmente da falta de justiça social e ética do nosso país. Meu marido e eu, queríamos construir uma vida diferente para nossas filhas, com paz e segurança. Queríamos liberdade para viver nossos valores cristãos, com integridade, usufruir dos frutos do nosso trabalho, andar nas ruas, dirigir, viver sem medo de sermos roubados, sequestrados e mortos por qualquer tostão e o que conseguimos, graças a Deus. Apesar das lutas, tenho um imenso orgulho de minhas filhas, não apenas pela formação e educação que tem, mas pela pessoas em que se tornaram. Também gosto muito do meu genro, um filho que ganhei”, diz.

Elaine e seu esposo

Em 2006, Elaine Fernandes era voluntária na área de aconselhamento na igreja que frequentava e foi contratada pelo SafeLink que é a linha de emergência para serviços de violência doméstica em Massachusetts, onde teve contado com outras situações ainda mais graves de abuso e tráfico humano. “Logo percebi a luta da mulher imigrante que além de toda a dificuldade de viver e criar seus filhos num país estranho, tem que sobreviver à violência e abuso sexual dentro de casa. Questões de desequilíbrio de poder e opressão sociais, causando ainda mais dor e dificuldades para a sobrevivência. Posso dizer que conheci melhor a cultura de abuso e opressão do nosso povo quando vi o que acontece por aqui, dentro das famílias e muitas vezes com as instituições que deveriam ajudar, como as igrejas (que funcionam como centros sociais e de recreação), não apenas negando ajuda, mas fechando completamente os olhos para o problema, apoiando o abusador, etc”, diz sobre os problemas dos abusos no ambiente familiar. 

Nestes 13 anos, Elaine passou por diferentes organizações sociais, todas sem fins lucrativos e costuma dizer que teve o privilégio de conhecer e trabalhar com muitas mulheres na comunidade e em outras populações. Trabalhou na área de Somerville, Framingham, North Shore, Boston e atualmente em Lowell.  

“São tantas histórias e lições aprendidas e posso dizer que sofri e chorei a morte de  clientes ao longo desses anos, mortes que poderiam ter sido evitadas. Vi pais perderem suas filhas, irmãos que tiveram que adotar seus sobrinhos porque perderam a mãe, vi filhos e filhas perderem seus pais, com a mãe morta e o pai na prisão, enfim muito sofrimento que poderia ter sido evitado. Também vi mulheres traumatizadas para toda a vida quando viram seus príncipes se transformarem em monstros. Vi histórias de lutas nas cortes e hospitais, mas também vi muitas histórias de superação, de sucesso com finais felizes (aliás, essa é uma das vantagens de trabalhar na mesma área por tantos anos). Continuo acreditando em finais felizes e uma dessas histórias”, afirma. 

Instada a contar uma destas histórias de violência e superação, Elaine cita Rosa, cujo nome foi trocado para manter sua privacidade. “A Rosa foi um desses casos que marcou a minha carreira. Rosa chegou no meu escritório numa sexta-feira, uns 50 minutos antes da gente fechar – ela chegou com a sua patroa, uma dessas amigas de verdade, um anjo, como Rosa me disse. A patroa pesquisou e encontrou o endereço da agência e a trouxe depois do trabalho em busca de ajuda. Rosa chorava e mantinha a cabeça baixa enquanto contava sua situação, aparentando ter mais idade do que realmente tinha. Era casada com Miguel há dez anos e eles tinham uma filhinha de oito anos que o Miguel as vezes dizia que a menina era fruto de alguma traição da Rosa. Miguel era ciumento – Rosa não podia conversar ou simplesmente olhar na direção de outro homem, não podia sair de casa – saia para trabalhar porque a patroa a buscava e a deixava na porta, além de ter muita pena dela, porque o Miguel já havia tentado de todo jeito fazer Rosa ser mandada embora (as vezes ele ia no lugar onde elas estavam trabalhando e fazia o maior escândalo, chamando Rosa de prostituta, vagabunda e outros insultos do tipo). O pagamento que a Rosa recebia, ele pegava de imediato. A Rosa e a menina, só saiam de casa com ele e apenas frequentavam as festas da família dele que era grande – e ela tinha que ir. Nessas festas, se a mulher conversasse demais, apanhava quando chegasse em casa, se ela não falasse com ninguém, apanhava também. Se algum homem dirigisse a palavra ou chegasse perto dela, ela apanharia quando chegasse em casa. Algumas vezes, eles deixavam a festa abruptamente e Rosa começava a apanhar dentro do carro, sem saber os motivos, mas o Miguel tinha visto ou ouvido alguma coisa que ele não tinha gostado. Essas saídas – mesmo as festas da igreja (era muito católica) se tornaram uma verdadeira tortura para ela, que não podia se recusar a ir. Sua filha também não podia sair de casa ou ter amiguinhos. Ia a escola e voltava para casa. O Miguel tinha decidido que não queria ninguém olhando para dentro da casa dele e que a Rosa não precisava ver homem nenhum passando na rua, então ele colocou umas cortinas pretas nas janelas o que tornava a tortura ainda maior. A casa estava sempre escura e a luz do sol – para ela e sua filha só se estivessem no trabalho/escola. Miguel trabalhava como vigia numa empresa, saia as 5 da tarde e voltava na manhã seguinte, mas tinha folga em alguns finais de semana. A família morava no andar debaixo na casa dos pais do Miguel que já eram velhinhos (por volta dos 90 anos) com um irmão mais jovem do Miguel – que ajudava a ‘cuidar’ do que acontecia com a Rosa e sua filha, enquanto o Miguel trabalhava. Todos ouviam a Rosa ser agredida, gritar e chorar, mas não faziam nada. Na tarde antes da visita ao meu escritório, a menina estava muito triste e chorando e comentou com a mãe que não aguentava mais ficar no escuro, que queria sair para brincar – mesmo sozinha. Rosa não aguentou ver a tristeza da filha e arrancou todas as cortinas das janelas e colocou tudo no lixo. Ficou feliz, viu o sol entrar pela janela – era verão. O Miguel tinha ido trabalhar e só voltaria no dia seguinte. Na alegria momentânea, saiu e brincou com sua filha até o sol baixar e cumprimentou suas vizinhas. Ela sabia que Miguel ia ficar bravo, mas pensou que teria alguma chance de argumentar que era em benefício da sua filha, além do que ele iria trabalhar no final de semana, dormiria durante o dia e teria menos tempo para bater nela. Rosa dormiu no quarto da filha naquela noite para evitar ser acordada debaixo de pancada. De manhã, quando se preparava para sair, o Miguel apareceu de surpresa e sussurrou no ouvido dela, perto da filha e da patroa que a esperava: ‘quando eu chegar essa noite, eu te mato! Você nunca mais vai me desobedecer’. A partir daí, na tarde daquela sexta-feira, Rosa decidiu que precisava fazer algo pelo bem de sua filha – foram muitas etapas, um longo processo para tirar a Rosa e sua filha daquela situação perigosa. Desde um plano para a segurança delas no final de semana, da ordem de proteção, do divórcio, da custódia final da criança e tudo mais, mas no final valeu a pena. Lembro que na corte, o Miguel apareceu como os outros abusadores que conheci, mostrando o verdadeiro covarde que ele era: terninho preto, cabeça baixa, olhar assustado com o advogado ao lado falando por ele: ‘Vossa excelência, meu cliente é um marido exemplar, trabalhador, não entende porque a mulher dele está dizendo essas coisas’. Rosa ainda tinha marcas da última surra que tinha levado na semana anterior e quando o juiz ouviu a história toda, até se comoveu. Quando vi a Rosa, uma semana depois da audiência na corte, me emocionei – ela parecia outra pessoa – tinha 15 anos menos do que eu – e foi como se tivesse feito um face lifting. Notei seus lindos olhos azuis, grandes e que estavam brilhando; corpo esticado, pele bonita, sem maquiagem nenhuma, sorriso nos lábios e uma paz profunda se fazia sentir enquanto me contava sobre seus planos para o futuro com sua filha. O coração alegre realmente faz o rosto formoso. Um parceiro, um marido bom, amoroso, um relacionamento saudável faz a mulher bonita – ela pode até ganhar uns pounds a mais (de felicidade) – risos, mas está sempre bonita, com os olhos exalando vida. Aos machões de plantão, digo sempre – sua mulher parece feia – olhe para que tipo de relacionamento você está promovendo”, conta.

Dois anos depois, Rosa estava em seu próprio apartamento com sua filha, trabalhando e se estabilizando e o trabalho de Elaine é sempre no sentido de devolver o poder de escolha, aquele sentimento de controle interno que anos de abuso causam a alguém. Para ela a escravidão começa quando a pessoa vai sendo subjugada dia a dia até o momento de sentir que não tem valor nenhum, direito nenhum, como se existisse uma segunda classe de ser humano.

“Por isso não perco a chance de educar as pessoas sobre essas questões que começam com crenças sociais de que um grupo de pessoas ou indivíduos são melhores e merecem mais do que outros, das questões de privilégio e opressão, racismo e todos os outros ismos que levam à violência. Claro que a violência doméstica e abuso sexual acontece com pessoas de todos os gêneros, classes sociais, raças etc, mas nesse dia 8 de março quero refletir um pouco na situação das mulheres, historicamente relegadas e oprimidas, mas sempre fortes, achando uma maneira de sobreviver e influenciar o mundo ao seu redor”, conclui. 

Atualmente Elaine Fernandes trabalha para o The Center For Hope and Healing (CHH) em Lowell, MA. O CHH, é uma organização sem fins lucrativos que trabalha exclusivamente contra violência sexual. Atende crianças, adolescentes e adultos. O trabalho de Elaine, além de dar aconselhamento individual para pessoas que sofreram o trauma do abuso sexual, consiste em coordenar o programa de acompanhamento e advocacia para os sobreviventes que buscam atendimento médico e precisam de apoio legal. De acordo com Elaine, é um trabalho amplo que envolve funcionários e voluntários. O CHH tem outros programas de educação e trabalho comunitários, trabalho de apoio a jovens, tráfico humano, e uma linha de emergência que funciona 24/7.

Para saber mais do The Center For Hope and Healing (CHH), clique aqui.

Fotos: acervo pessoal

Jehozadak Pereira

Jehozadak Pereira é jornalista profissional e foi editor da Liberdade Magazine, da Refletir Magazine, do RefletirNews, dos jornais A Notícia e Metropolitan, do JS News e jornalista da Rede ABR - WSRO 650 AM. Foi articulista e editorialista do National Brazilian Newspaper, de Newark, New Jersey. É detentor de prêmios importantes tais como o Brazilian Press Awards e NEENA - New England Ethnic Newswire Award entre outros