Especial racismo: ‘O policial me humilhou o tempo todo…’

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O depoimento desta segunda reportagem da série sobre racismo e preconceito publicada tempos atrás no Jornal do Sports USA é de Júlio, que foi vítima de racismo e forçado a ir embora mesmo que sua esposa tivesse green card e seus filhos tivessem nascido nos Estados Unidos. De volta a América depois de anos de espera, Júlio diz não guardar rancor e nem mágoa. Confira o depoimento deste brasileiro nascido em Vitória e criado no Rio de Janeiro.

Desde muito cedo aprendi a me defender das injustiças, do preconceito e do racismo. Fui criado pela minha avó e duas tias, depois que meu pai abandonou minha mãe com duas crianças e ela foi internada numa colônia de doentes mentais. Minha avó e tias eram empregadas em casas de famílias ricas no Rio de Janeiro e quando iam trabalhar íamos eu e minha irmã com elas e éramos obrigados a ficar sentados em silêncio para não chamar a atenção dos patrões brancos. Perdi a conta das vezes que fomos feitos sacos de pancadas pelos meninos e meninas brancas e quando chegou a época de irmos para a escola, nos misturamos com crianças de todos os tipos e as coisas acalmaram um pouco. Meus parentes eram todos adeptos da Casa de Oração e lá frequentamos. Trabalhei uns 10 anos no jornal O Globo como operário até que decidi vir para os Estados Unidos. Aqui morei na Flórida, na Califórnia e em Utah em diversos trabalhos, inclusive em fazendas. Um dia numa reunião na igreja conheci Florence, uma enfermeira haitiana, negra como eu e começamos a namorar e uns dois anos depois nos casamos e pouco depois ela recebeu o green card, sendo que eu não tinha documentos. Tivemos dois filhos na sequência e nos mudamos para a região de New York onde eu tinha diversos trabalhos, sendo um deles fazendo limpeza num salão de festas nos finais de semana. Limpava banheiros, cuidava da cozinha e quando as festas acabavam tinha de deixar tudo limpo e em ordem. Um ano depois que eu trabalhava neste lugar, durante um aniversário, uma das crianças, uma criança autista sumiu e ninguém achava o menino que devia ter uns 10 anos na época. Foi uma correria, pois a criança precisa tomar remédios e logo a polícia foi chamada. Nós trabalhávamos em quatro pessoas, um irlandês que cuidava da parte elétrica, um mexicano que era o manobrista e uma mulher do Canadá. Logo, a polícia definiu que eu e o mexicano éramos os suspeitos do desaparecimento da criança e fomos levados presos. Depois de algumas horas alguém teve a ideia de ir no basement e o menino estava lá num canto escuro e se constatou que quando o irlandês passou deixou a porta aberta, ele deve entrado e ninguém viu. Na delegacia tiraram as nossas digitais e o mexicano que tinha carta de deportação foi entregue para a imigração e nunca mais o vi. Os policiais diziam que por eu ser negro, era suspeito do sumiço do menino e faziam piadas o tempo todo. Tinha um oficial que era o mais agressivo que me dizia que eu ia ser violentado na cadeia e que era melhor dizer o que havia feito com a criança. Me humilhou o tempo todo. Quando chegou a notícia que haviam localizado a criança ele me disse que havia dado sorte, mas que não escaparia da deportação e disse que eu era um lixo. Como eu era indocumentado, a imigração foi chamada e fiquei detido a espera de uma audiência e de nada adiantou os esforços da minha esposa, dos irmãos e dos anciãos da igrejas e optei pela saída voluntária. Foram meses de luta e como faltavam dois anos para minha esposa aplicar para a cidadania, decidimos que as crianças iriam para o Brasil e ela ia a cada seis meses. Quando saiu a cidadania ela se mudou para o Brasil e tivemos um outro filho e neste período me dediquei a trabalhar como motorista e depois fomos para o Vale do Jequitinhonha trabalhar com famílias carentes. Nossos planos era voltar aos Estados Unidos, porque aqui é que as crianças haviam nascido e é a pátria deles. Demos entrada nos meus papéis e meu green card foi negado por causa daquela ocorrência, mesmo que não tivesse dado em nada e eu não tivesse qualquer culpa e sequer houve um julgamento. Recorri através de advogado e consegui o green card e voltamos a morar nos Estados Unidos no início de 2011. Este episódio atrasou a minha vida e da minha família em pelo menos 10 anos, embora o tempo passado no Brasil tenha sido de bênçãos para nós e tenho a certeza de que se não fosse negro nada teria acontecido comigo. Como eu tenho a certeza disto? O irlandês que trabalhava comigo no salão de festas era indocumentado como eu e o mexicano, mas era branco e sequer foi inquirido como eu fui. Não tenho raiva, mágoa ou rancor do que me aconteceu, tenho sim a noção de ser impotente diante da injustiça e do preconceito seja aqui nos Estados Unidos, seja no Brasil ou em qualquer lugar do mundo e me consolo com as palavras do apóstolo Paulo em Romanos 8.28 – ‘E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito’”.

Júlio trabalha atualmente num asilo cuidando de idosos na Flórida

Jehozadak Pereira

Jehozadak Pereira é jornalista profissional e foi editor da Liberdade Magazine, da Refletir Magazine, do RefletirNews, dos jornais A Notícia e Metropolitan, do JS News e jornalista da Rede ABR - WSRO 650 AM. Foi articulista e editorialista do National Brazilian Newspaper, de Newark, New Jersey. É detentor de prêmios importantes tais como o Brazilian Press Awards e NEENA - New England Ethnic Newswire Award entre outros