Os tenebrosos anos da ditadura militar brasileira

Corrupção, tortura, morte e uma truculência jamais vista na história do Brasil

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O Brasil viveu um período tenebroso durante a ditadura militar. Foto: Fundação Arquivo Nacional

Quando li Germinal, um dos poucos títulos levado por um jovem médico argentino para Sierra Maestra, senti no peito o mesmo aperto que sentia quando criança ao ouvir os sinos da Igreja Santa Bárbara, na Vila Operária, em Criciúma, anunciando a morte de mais um mineiro.

Em março de 1964, os militares, com ajuda do meio empresarial e político, mais a classe média alta (sempre ela!) deram um golpe implantando uma ditadura que durou 21 anos.

Foi um tempo de atrasos, perseguições, prisões, torturas, assassinatos e muita corrupção, que aprofundaram a desigualdade social deixando um legado de miséria.

Era a conclusão de um projeto que visava à derrubada do trabalhismo com a destituição do então presidente João Goulart, eleito democraticamente pelo voto direto, que defendia o crescimento da economia e a promoção do bem-estar social.

Jango, como era chamado, pretendia realizar a chamada Reforma de Base, que tinha como objetivo mexer em toda estrutura do governo e do país. Da reforma agrária à educação em todos os níveis, passando pelo desenvolvimento da indutria nacional, geração de empregos, moradia e saúde para todos.

Além de empresas conhecidas, pecuaristas e agricultores, o golpe contou com a ajuda inestimável de três importantes grupos de comunicação da época: O Globo, Jornal do Brasil e Diários Associados.

O grande salto do grupo Globo, aliás, comprando equipamentos importados com isenções de impostos e recebendo inúmeras concessões de rádio e televisão, se deu exatamente durante este período.

Era uma recompensa ao apoio incondicional a um regime que suprimiu a liberdade do povo brasileiro.

Quem ganhou com o golpe foram banqueiros, empresarios, latifundiários e a “elite”. A conta quem pagou, como sempre acontece no Brasil, foram os mesmos de sempre: os pobres.

O salário mínimo perdeu 50% do seu valor real durante a ditadura. Os reajustes da inflação não compensavam as perdas. Perseguidos, os sindicatos não tinham poder de negociação com os empresários, fator que contribuiu para aumentar brutalmente a desigualdade social do país.

Um estudo feito pela Universidade de Brasília com base no imposto de renda, apontou que 1% dos mais ricos em 1964, tinham entre 17% e 19% da renda do país. Mas no final da ditadura, em 1985, esta participação tinha subido para quase 30% da renda. A conta é simples: este resultado representou miséria e fome para a grande maioria da população.

Em 1974, 62% dos brasileiros sofriam de subnutrição. Entre 1972 e 1976, morreram quase 1,5 milhão de crianças por causas associadas à desnutrição e falta de saneamento básico.

Na época a imprensa era censurada. Notícias negativas não podiam circular sob pena de prisão e fechamento do veículo. 

Em 1974, uma epidemia de meningite, por exemplo, foi censurada pelo governo.

Os números não deixam dúvidas: um terço da população adulta era analfabeta. Não existia SUS e nem programas sociais. Quem não tinha carteira assinada não tinha acesso ao sistema de saúde.

Durante a ditadura o índice de criminalidade disparou no Brasil. Grupos de extermínio da polícia civil e militar deitaram a rolaram impunimente nos grandes centros urbanos, como o esquadrão da morte que surgiu no Rio de Janeiro.

Grandes obras do regime como a ponte Rio-Niteroí, a usina nuclear de Angra dos Reis, a usina hidrelétrica de Itaipu e a Transamazônica, foram construídas com empréstimos estrangeiros, o que fez nossa dívida externa disparar.

A corrupção corria solta. Só a usina de Itaipu, segundo cálculos dos mais otimistas e conservadores, passou fácil dos US$ 30 bilhões. Mais de dez vezes o seu valor.

O diplomata José Jobim, sabia de todo esquema de corrupção na construção da hidrelétrica envolvendo militares, políticos e empresários e pretendia contar tudo em um livro.

Dois dias depois de assistir a posse do general Figueredo, seu corpo foi encontrado em Itanhangá, início da Barra da Tijuca, na zona oeste da cidade do Rio, com claras evidências de tortura antes de ser pendurado numa árvore.

Em 13 de dezembro de 1968, foi decretado o AI-5, que inaugurou o período mais sombrio e violento da ditadura. O Congresso e assembleias legislativas dos estados foram fechados, políticos presos e exilados (mais de 170 mandatos cassados), instituiu-se a censura prévia da imprensa e de produções artísticas e deu ao então ditador Costa e Silva a possibilidade de intervenção nos estados e municípios. Qualquer cidadão ou cidadã poderia ser preso a qualquer momento.

Pelos dez anos seguintes institucionalizou-se torturas, assassinatos, perseguições e violações dos direitos humanos.

Naquele período muitos conhecidos da minha pequena vila foram presos e mortos. Eles não poupavam ninguém, nem crianças.

Uma vizinha grávida, Aurora Maria, funcionária da área administrativa de uma companhia de cerâmica, entregue por um delator, colega de trabalho, apanhou dentro de casa na frente da filha de cinco anos. Chutada no chão da cozinha por membros da policia, sangrou em desespero e abortou na prisão. Nunca mais se recuperou. Totalmente debilitada, morreu dias depois. Sua única filha, Catarina, vivendo entre uma clínica e outra, em crises profundas de depressão, cometeu suicídio antes de completar 25 anos.

Carmem, 26 anos, foi outra. Levada quando voltava da escola onde lecionava, sem uma acusação formal, sofreu todo tipo de abuso. Foi estuprada, arrancaram os bicos de seus seios e as unhas dos pés e das mãos. Nua e amarrada sobre uma maca de pernas abertas, recebeu descargas elétricas na língua e nas orelhas. Até ratos vivos foram colocados em sua vagina. Seu corpo apresentava fraturas expostas num braço e numa perna. Foi entregue aos amigos e familiares num caixão coberto de flores para esconder as marcas da tortura.

Em seu último instante de sofrimento foi colocado em sua cabeça um torniquete que foi apertado até um de seus olhos saltar para fora. Seu derradeiro sopro de vida foi um gemido lancinante de misericórdia que lhe foi negado.

João Batista, um jovem da vila, sonhador e conhecido de todos, desapareceu numa tarde. Nunca mais seus pais tiveram notícias. Filho de um motorista de caminhão e de uma lavadeira, estava no último ano de medicina. Todo trabalho e economia da família foi entregue ao sonho de ver o único filho formado. Morreram sem descobrir seu paradeiro. Muitos anos depois, um de seus melhores amigos, descobriu uma lista onde aparecia seu nome. Nela constava que ele havia sido incinerado numa fábrica depois de assassinado num quartel da Marinha. Seu crime: ser tesoureiro da UNE.

Ieda Santos, advogada, foi presa em casa, numa rua antes da minha, numa manhã de sábado foi levada e torturada até a morte. Seus companheiros de prisão contaram anos mais tarde que ela foi estuprada naquele mesmo dia por alguns soldados do exército. Sevícias seguiram-se por vários dias. Sempre nua e amarrada a uma cadeira. Ali, numa minúscula cela, apanhava tanto que urinava e defecava para delírio dos torturadores, que desferiam golpes de cassetete e socos. Uma noite silenciou. Ninguém mais ouviu seus soluços e gemidos. Seu corpo ou o que restou dele, jamais foi encontrado.

E tinha o seu José Elias, dono de um armázem que vendia fiado aos mineiros. A conhecida caderneta que era coberta no final do mês. O pobre homem apanhou tanto dos milicos que perdeu os movimentos de um lado do corpo. Eles queriam os nomes dos líderes dos comunistas que ele não conhecia e que não existiam, como ficou provado anos mais tarde. Quase cego de um olho e totalmente cego do outro, uma tarde, sofrendo numa cadeira de rodas, um enfarto fulminante veio aliviar seu sofrimento na frente da esposa e do filho adolescente.

Não podemos esquecer da “ponta da praia”, que era seguidamente mencionado pelo ex-presidente Bolsonaro, sempre com um sorriso de satisfação.

O termo faz referência a uma base da Marinha na Restinga de Marambaia, no Rio de Janeiro, local usado para a execução de presos políticos.

Outra prática comum dos militares do nosso continente, era jogar os torturados ainda com vida de uma aeronave em alto mar.

Como falou o relator da ONU, “comemorar a ditadura militar é imoral e inadmissível”.

Eu diria, relator, é pouco! É inumano. É anticristão.

Em 2014, foi concluído o relatório final elaborado pela Comissão Nacional da Verdade, listando o nome de pessoas que foram mortas ou desaparecidas durante o regime. 

Foram 191 pessoas assassinadas e 243 pessoas desaparecidas – um total de 434 pessoas. 

Segundo a Human Rights Watch, organização internacional não governamental de direitos humanos, aproximadamente 20 mil pessoas foram torturadas no Brasil durante a ditadura militar.  

Quando lembro do livro de Émile Zola, volta o passado e meu corpo é tomado por uma profunda dor e imensa tristeza.

Lembro de um tempo de injustiças, de explorações desmedidas, de violência, de impunidades que ainda não acabaram em meu país.

Sinto um nó na garganta ao lembrar de tantos acontecimentos e uma música dos Engenheiros do Hawaii, composta por Carlos Maltz, que serve de trilha por estes dias de abril, que diz: “…hoje o céu está pesado (…) nuvens negras do passado, delirante flor do mal (…)”.

Como escreveu o dramaturgo, poeta e encenador alemão, Bertolt Brecht, “a cadela do fascismo está sempre no cio”.

Se não ficarmos atentos, se não levantarmos nossas atenções e cuidados, esta escuridão, trazendo sofrimento e morte, pode voltar.

Nota do autor: todos os fatos narrados nesta crônica são baseados em fatos reais, incluindo todos os dados percentuais e econômicos. Apenas os nomes dos personagens foram trocados. 

Gerald D

O gremista Gerald D escreve sobre artes, literatura, futebol e política com muita propriedade e consciência, o que reflete o seu gosto apurado pela boa leitura