Interlúdio

“Se eu conversasse com Deus, Iria lhe perguntar: por que é que sofremos tanto. Quando viemos pra cá?"

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Qual é o sentido da vida? Foto: Jehozadak Pereira/MNUSA

Os mortos chegaram. Vinham de longe fazer companhia. Muita gente que eu não conhecia. Todos robustos, bem vestidos e felizes. Alguns me abraçaram faceiros. Outros mais contidos, apenas tocaram meu ombro. 

Vieram anunciar que muito em breve estarei com eles saindo desta vida miserável e sofrida.

Lá estava tia Ruth, que me deu um abraço afetuoso. Meus avôs, meu pai e alguns amigos que o tempo deixou estático na lembrança. 

Mamãe também estava lá segurando um cesto de flores. Me olhando de longe com aquele inconfundível blusão azul fechado apenas por três botões com um sorriso largo e aqueles lindos cabelos brancos.

Senti uma forte dor no peito que paralisou todo o meu corpo para em seguida provocar uma paz e um relaxamento indiscritível.

Abri os olhos depois de um certo tempo. Olhei o teto de um branco infinito e um filme correu pela memória revelando a inutilidade concreta.

Morrer é objeção. O último ato de uma existência.

A morte põe fim aos sofrimentos, dores e angústias. Para a morte não existe o dia seguinte, o logo mais, o depois.

Como escreveu Kafka, “o sentido da vida é que ela termina”.

Nós somos mais do que fantasmas andando por aí. Atormentando o mundo dias e noites. Produzindo sombras que cobrem o brilho do sol e a beleza das estrelas.

O sentido mais preciso da ambiguidade. Perigosos, como o cristão da esquina, que ao mesmo tempo que condena e esbraveja contra o aborto, silencia sobre o racismo e assente sobre o porte de armas, a tortura e a pena de morte. Que grita e levanta ações contra animais abandonados, mas não se compadece com seres humanos dormindo pelas ruas.

Cansado não posso mais seguir. Quero parar com esta loucura de viver num mundo onde pastores sorteiam armas e outros trocam o futuro de crianças por barras de ouro.

De ver líderes e palhaços provocando guerras, olhando para o próprio umbigo. Outros, negando vacinas e comemorando a morte.

Quero seguir deitado nesta cama desconfortável tentando esquecer o mundo sem alma. Quero fechar meus olhos e confraternizar com os mortos ao meu redor.

Os covardes morrem várias vezes antes de sua morte física, dizia Shakespeare. Na verdade, morremos um pouco a cada dia, vendo a inocuidade dos homens.

Mais de 800 milhões de humanos passam fome no planeta. Na América Latina, 60 milhões. No Brasil, um dos três maiores produtores e exportadores de alimentos do mundo, mais de 50% da população convive com insegurança alimentar e 33,1 milhões passam fome. Hoje, 1% da população, detêm mais de 49% de toda riqueza do país.

Minha indignação e inconformidade não é contra quem tem muito, mas contra quem não tem nada.

Diante desta realidade, elevo meu pensamento em oração e Ele não responde.

A mulher demora. A notícia não deve ser boa. Vejo linhas flutuando e movimentos pelo lado de fora. Não sinto minha respiração.

Não quero sair deste transe. Quero que seja permanente.

Fecho os olhos. A imagem descola do meu corpo novamente e me leva para onde não sei. Vejo cavalos, neve caindo e sinto frio. Estou numa rua longa e deserta.

Estaria chegando ao inferno?

Estaria em direção dos nove círculos descritos por Dante, caminhando para o centro da terra em definitivo?

Que sentido faz esta dor lancinante em meu peito, esta falta de ar, este desespero de um grito preso na garganta?

Minha penalidade pela neutralidade e ação, será vagar por toda eternidade sendo picado por vespas e tendo o meu sangue bebido por larvas?

Prefiro acreditar que o inferno não é profundo e quente, mas frio.

Não sinto mais o corpo e seus males. Não sinto dores. Estou inerte. Mergulhado na mais absoluta paz.

Não quero mais voltar. Tento olhar o semblante daqueles vultos e entender suas vidas passadas. O que foram e onde viveram? Como eram tratados? Como administravam suas dores, frustrações, perdas, alegrias e tristezas?

Foram capazes de amar um dia? Sentir a febre de uma paixão avassaladora e de serem verdadeiramente amados?

Alcançaram seus objetivos e sonhos ou fracassaram como eu?

Alguém segura a minha mão. É uma senhora de cabelos brancos. Sorri satisfeita e feliz. Conforta meu coração que já não bate.

– Onde está Deus? Ninguém responde.

Ariano Suassuna dizia que acreditava em Deus por necessidade. Se ele não existisse, a vida seria uma aventura amaldiçoada. Que não conseguiria conviver com a visão amarga, dura, atormentada e sangrenta do mundo. 

E concluía: então, ou existe Deus, ou a vida não tem sentido nenhum. Bastaria a morte para tirar qualquer sentido da existência.

Ele existe – insisto. E meu grito ecoa sem resposta.

Para Albert Camus, “sem Deus e sem um mestre, o peso dos dias é terrível”.

Qual o sentido da vida?

Que pecado é este que eu tenho que sofrer tanto e pagar com a morte?

Para Camus, a felicidade será sempre uma disciplina deixada de lado no currículo da humanidade. Para ele uma vida destinada à morte converte a existência humana num sem-sentido e faz cada homem um absurdo.

No livro A Peste, tenta tornar possível a vida feliz num mundo mergulhado no caos e destinado à morte.

Seria uma busca desesperada do sentido da vida?

Nas páginas finais, recorda-nos das guerras, das doenças, do sofrimento dos inocentes, da maldade com que o homem trata o homem e deixa-nos uma reflexão.

A mulher baixa e apressada voltou. Ouvi a porta fechando. Sentou-se perto da cama e chamou pelo meu nome. Abri os olhos e tentei sair da letargia que me envolvia.

Senti um vento fresco da noite em silêncio. Lembrei dos amigos que e da promessa de um retorno em definitivo.

Já no meu canto lembrei do poeta Leandro Gomes de Barros, que formula esse dilema que atormenta a humanidade:

“Se eu conversasse com Deus

Iria lhe perguntar:

Por que é que sofremos tanto

Quando viemos pra cá?

Que dívida é essa

Que a gente tem que morrer para pagar?”.

Uma resposta filosófica ao sentido da vida?

Então, qual seria a resposta?

Gerald D

O gremista Gerald D escreve sobre artes, literatura, futebol e política com muita propriedade e consciência, o que reflete o seu gosto apurado pela boa leitura

1 COMMENT

  1. Que texto incrível. Quantos questões veio a mente a cada frase escrita. Diante de tudo que está acontecendo, onde estou, para onde vou.
    Parabéns ao colunista pela visão de mundo que estamos abarcados

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