Billie Holiday: uma voz contra o racismo nos Estados Unidos

'Strange Fruit' narra os horrores dos linchamentos de seres humanos

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Billie Holiday usou sua arte para combater o racismo e a perseguição aos negros

No dia 20 de abril de 1939, acompanhada de oito músicos, Billie Holiday entrou num estúdio pequeno chamado Commodore Record, famoso por seu repertório de artistas progressistas – sua gravadora, a Columbia Record, recusou-se a gravar – para finalmente eternizar uma das músicas mais impactantes da história fonográfica dos Estados Unidos, Strange Fruit.

Billie Holiday, a maior de todas as cantoras. Imagem de divulgação

Billie foi uma mulher que levou muita porrada na vida.

Era uma negra num país predominantemente branco e extremamente racista. 

Conhecida como “Lady Day”, é considerada pelos críticos musicais como uma das maiores vozes na história do jazz, além de ser a responsável por criar o jazz moderno.

Dona de um domínio absoluto sobre o que cantava.

Nada de gestos corporais e feitos de luzes.

Parada diante do microfone ela simplesmente soltava a voz e encantava com o seu imenso talento.

William Dufty, co-autor da autobiografia de Billie, Lady Sings the Blues, disse certa feita: “Holiday não canta músicas; ela as transforma”.  

Gravou em torno de 230 canções só com músicos de primeira linha.

Billie foi uma das primeiras mulheres negras a se apresentar com bandas de homens brancos.

Em 1932, chamou a atenção do produtor musical John Hammond, que mais tarde a levaria para gravar o primeiro disco com a banda de Benny Goodman.

Cantou com Artie Shaw e Count Basie e com orquestras de Duke Ellington e Teddy Wilson. E apareceu no cinema, como no musical New Orleans, de 1947, ao lado de Louis Armstrong, que ainda tinha Arturo de Córdova e Dorothy Patrick.

Strange Fruit, narra os horrores dos linchamentos no país e foi um dos grandes sucessos de Billie.

Foi uma das mais influentes canções de protesto do século 20 e se converteu numa das maiores bofetadas de toda história contra a violência racial numa das sociedades mais hipócritas do mundo.

Abel Meeropol, autor de ‘Strange Fruit’, escolhida em 1999 como a canção do século. Imagem: Arquivo

Em 1999, foi escolhida pela Time Magazine como a “canção do século”. Em 2002, foi incluída no Registro Nacional da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, imortalizada como a canção de grande importância para o patrimônio musical.

A letra da canção era um poema de três estrofes chamado Bitter Fruit, escrito em 1936 por um judeu chamado Abel Meeropol – professor universitário em New York – sob o pseudônimo de Lewis Allen.

Ativista político e membro do partido comunista, Meeropol, musicou o poema, que era cantado nas rodas de esquerda.

Sua primeira aparição pública ocorreu em janeiro de 1937 no jornal sindical The New York Teacher.

E para o grande público, teria acontecido num show da cantora de jazz Laura Duncan, no Madison Square Garden, em 1938.

Teria sido nesse show que Robert Gordon, então gerente do clube Café Society, ouviu a música pela primeira vez.

Ele mencionou para Barney Josephson, fundador do clube, e Meeropol foi convidado a tocá-la para Billie.

O encontro entre Billie e a canção aconteceu no próprio clube, uma boate de jazz frequentada por setores progressistas e engajados da área cultural, política e social de New York, onde negros e brancos confraternizavam sem problemas. 

Seu músico Sonny White e o arranjador Danny Mendelsohn trabalharam na música por três semanas antes de estrearem Strange Fruit renovada no próprio clube.

Em seu livro Strange Fruit: the Biography of a Song, de 2001, o escritor David Margolick, escreve que o clube e sua política, era “provavelmente o único lugar na América onde Strange Fruit poderia ter sido cantada e apreciada”.

Na primeira apresentação ficou evidente para todos o impacto que a canção teria quando fosse lançada comercialmente.

“Na primeira vez que eu cantei, eu achei que houvesse algo de errado… Não houve aplauso. Aí, uma pessoa começou a bater palmas, de um jeito nervoso. E, de repente, todo mundo estava aplaudindo”, disse Billie Holiday em sua autobiografia.   

“Eu escrevi Strange Fruit porque odeio os linchamentos, odeio injustiça e odeio as pessoas que os perpetuam”, disse Meeropol, em 1971.

O professor nunca testemunhou um linchamento – ele vivia em New York -, mas acredita-se que ele tenha composto o poema depois de ver a foto do linchamento de Thomas Shipp e Abram Smith, em 1930 em Indiana, feita pelo fotógrafo Lawrence Beitler.  

Em 2015, a organização Equal Justice Initiative, divulgou um relatório sobre os linchamentos. Foram cinco anos de pesquisas e mais de 160 visitas a sites em todo sul do país.

O relatório final apontou 3.959 vítimas de linchamentos em 12 estados do Sul entre 1877 e 1950, algumas outras fontes, porém, garantem que foi muito mais.

Para ser torturado e morto, bastava cruzar com um branco para receber uma acusação banal.

Um negro era espancado até a morte, pelo simples fato de entrar na fila de uma lanchonete qualquer.

Famílias eram arrancadas de suas casas e espancadas sem perdão. Mulheres sofriam todo tipo de violência e humilhação.  

E o roteiro final era sempre o mesmo. 

Outra prática comum era tocar fogo nas casas durante a madrugada enquanto toda família dormia. 

Os linchamentos foram uma das causas da imigração massiva de cerca de 6 milhões de afro-americanos do Sul para o Norte, entre 1915 e 1970, criando uma série de problemas para os sulistas, como a falta de mão de obra barata.      

Em 2005, o Senado dos Estados Unidos pediu desculpas por não ter aprovado uma legislação proibindo os linchamentos.

Em seu livro, o escritor David Margolick descreve como se dava a maior parte dos linchamentos.

Ocorria em cidades pequenas e pobres, e muitos tinham o apoio da comunidade.

Eram quase espetáculos de entretenimento, que reuniam a população para assistir o rito bárbaro de matar negros brutalmente e em seguida pendurar os corpos mortos em árvores para exibir o feito.

Em alguns casos, eram publicados anúncios nos jornais, convocando as pessoas para participarem dos linchamentos.

Imagine em 1939, uma negra cantando uma música que lembrava o  assassinato de negros pendurados em árvores para uma plateia de maioria branca!

Para assegurar que ela causasse impacto e fosse apreciada, Billie e Josephson criaram condições específicas para as apresentações.

Seria a última do repertório, que normalmente girava em torno de dez ou 12 músicas.

Ao sinal, silêncio absoluto, nenhum serviço de bar, ninguém circulando, luzes diminuídas e um único facho de luz sobre o rosto de Billie Holiday.

Como falou Josephson, “as pessoas tinham que se lembrar de Strange Fruit, tinham que sentir seus corpos queimando por dentro”.

Uma música tão perturbadora, que não era seguro cantá-la em qualquer lugar.

E Billie sabia disso como ninguém.

A música sofria protestos até mesmo nos lugares onde podia ser tocada.

Não havia censura, mas sua execução em rádios era quase “proibida”, pelo mal estar que causava nos ouvintes.

Foi a partir desta música que o FBI encostou de vez em Billie e passou a persegui-la como uma suspeita de qualquer coisa.

Em 1959, descobriu uma cirrose hepática proveniente do vício na bebida. Internada no mesmo ano, foi diagnosticada com uma insuficiência cardíaca e edema pulmonar. 

No quarto do hospital, foi acusada por posse de heroína e maconha, ficando sob guarda  policial até receber alta. Encaminhada a um presídio, a prisão não aconteceu.  

Numa apresentação no Harlem, no Apollo Theater, em 1943, Jack Schiffman descreveu como se sentiu quando Billie cantou Strange Fruit:

“E quando ela arrancava as últimas palavras de sua boca, não havia uma única alma, branca ou negra, que não se sentisse meio estrangulada. Seguia-se um momento de silêncio pesado, opressivo,  e então uma espécie de som sussurrante que eu nunca tinha ouvido antes. Era o som de quase mil pessoas suspirando”.

A música causou um choque fulminante e foi tema em vários jornais pelo país e fez parte do repertório de Billie até sua morte, em 1959.

Não era apenas a letra da canção que mexia com quem a ouvia, mas a maneira com que Billie a interpretava.

Vários artistas gravaram Strange Fruit, mas ninguém cantava com a força e a interpretação de Billie Holiday.

A tarde caia pálida e lenta no horizonte naquele 7 de fevereiro de 1904, enquanto Luther Holbert e uma mulher, que possivelmente era sua esposa, estavam sendo amarrados a uma árvore em Doddsville, Mississippi, por seis homens. Ambos foram obrigados aos gritos a erguerem as mãos. Em seguida, seus dedos foram cortados um a um e jogados como souvenir para a multidão em delírio. E o horror continuou com suas orelhas que também foram cortadas e exibidas ao público como troféu, sob aplausos e risos. Não satisfeitos, os dois foram espancados por criaturas ensandecidas. Um objeto similar a um saca-rolhas foi usado para fazer buracos em seus corpos arrancando pedaços de carnes para a satisfação geral. Eles não gritavam mais. Anestesiados pela dor e esgotados, apenas soltavam pequenos e inaudíveis gemidos, num clamor por misericórdia. Seus algozes sem mais repertório, jogaram, como derradeiro ato, Holbert e a mulher em uma fogueira para morrerem queimados.

O evento insano foi assistido por uma multidão de homens, mulheres e até crianças, todos brancos comendo ovos recheados e tomando limonada ou uísque. 

Todos felizes e tranquilos numa tarde de domingo em família. 

Letra original de Strange Fruit
Southern trees bear a strange fruit
Blood on the leaves and blood at the root
Black bodies swinging in the southern breeze
Strange fruit hanging from the poplar trees

Pastoral scene of the gallant South
The bulging eyes and the twisted mouth
Scent of magnolia, sweet and fresh
Then the sudden smell of burning flesh

Here is fruit for the crows to pluck
For the rain to gather, for the wind to suck
For the sun to rot, for the tree to drop
Here is a strange and bitter crop

Fontes de pesquisa
BBC World (Ángel Bermúdes) 
BBC Culture (Ainda Amoako)
Strange Fruit: the Biography of a Song, 2001, David Margolick
Lady Sings the Blue – Billie Holiday, William Dufty
Rolling Stone Magazine – “Billie Holiday”
Rolling Stone – “The 500 Greatest Songs of All Time
Black Resonance: Iconic Women Singers and African American Literature, Emily J. Lordi

Gerald D

O gremista Gerald D escreve sobre artes, literatura, futebol e política com muita propriedade e consciência, o que reflete o seu gosto apurado pela boa leitura